sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O MESTRE

Seu Alaor caminhava lentamente pelo pátio do Aeroclube onde nos últimos quarenta anos dera instrução, tendo formado um incontável número de alunos, alguns já Comandantes aposentados da aviação comercial.

Seus cabelos brancos e o rosto talhado por rugas denunciavam a dedicação e as infindáveis horas debaixo de sol a que o velho Alaor se expusera durante todo esse tempo. O tempo vencia-lhe as feições, mas não conseguia fazer adormecer as asas da velha águia.

Durante suas andanças, passava a mão em cada um três P-56 Paulistinha que compunham a “frota” do aeroclube. Todos contemporâneos de Seu Alaor, e pelos quais ele tinha um carinho especial como se fossem seus bichinhos de estimação. A cada pequeno acidente, Alaor fazia questão de ajudar a recuperar o avião pessoalmente. Aqueles aviões faziam parte de seu corpo.

Ainda se remoia de amargura quando lhe vinha à lembrança o trágico acidente em que perdera um quarto avião e um aluno-solo. Numa manhã cinzenta, sem que estivesse presente no Aeroclube para “liberar o vôo”, como costumeiramente fazia, o aluno foi autorizado, por uma secretária, a decolar, a fim de realizar manobras altas a alguns quilômetros dali.

A entrada de uma frente fria fez com que as prometidas chuvas desabassem sobre toda a região, e o aluno viu-se cercado por pesados cumulonimbus. Na tentativa de regressar ao campo, "guardou" seu vôo num desses gigantes, sucumbindo nas fortes correntes descendentes, que o jogaram ao chão como se fosse um brinquedo. No íntimo Alaor ainda se culpava por não estar no Aeroclube naquele dia. Daí em diante, ninguém – a não ser ele – teria a competência para liberar vôos de alunos.

Devido à falta de checadores, o antigo DAC havia conferido a Alaor o título de Checador. Título esse, que ele honrava realizando vôos de exame rigidamente conduzidos dentro dos padrões da legislação. Dessa forma, não só dava instrução como examinava a performance de seus alunos, conferindo-lhes a licença de Piloto Privado.

Um de seus alunos, já em fase de “check”, era Júlio - um jovem de 19 anos, a quem Alaor enxergava como alguém que teria um futuro brilhante na aviação, dada a habilidade com que o jovem manobrava o avião. O rapaz havia nascido pra voar, pensava Alaor.


Já tendo completado as quarenta horas de vôo, Julio havia preparado tudo para seu vôo de check, que Alaor marcara para a manhã seguinte. Na hora combinada, lá estava o jovem, prostrado junto ao avião, enquanto Alaor fazia sua ronda costumeira pelo pátio.

Alaor aproxima-se do jovem e pergunta:

- Então, Júlio, tudo pronto?- Tudo pronto Seu Alaor!

- Fez a inspeção externa?

- Fiz sim senhor!- O Henrique (mecânico do Aeroclube) me disse que um das velas desse avião não está boa. O motor está "pipocando" na partida e também quando avançamos mais rápido a manete de potência. Mas dá pra voar assim mesmo. Vamos?

- Vamos! – disse o jovem, já dirigindo-se para o interior do avião.

Enquanto Júlio se amarrava com o cinto de segurança, Alaor pediu licença dizendo que iria até o hangar assinar alguns papéis. Após uma hora de espera, o rapaz desiste de ficar sentado no avião e vai à procura de Alaor. Mas o velho instrutor não estava no Aeroclube. O dia passa sem que ele apareça.

No dia seguinte Júlio volta ao Aeroclube e encontra Alaor junto ao mecânico, ajudando-lhe a trocar peças do trem de pouso de uma aeronave de terceiros. O aluno acha mais prudente não comentar o acontecido, mas mesmo assim Alaor se desculpa, dizendo que teve que sair sem avisar, pois um tinha um problema urgente para resolver. Júlio, ainda que não muito convencido, ouve as desculpas. Alaor então manda que o rapaz vá preparar o avião.

Chegando perto do velho Paulistinha que seria usado no check, Alaor encontra seu pupilo fazendo a inspeção externa na “máquina”. Pergunta-lhe:

- Julio, está tudo pronto?

- Está sim, Seu Alaor! Tudo prontinho!

- Ok, então vamos lá! O vento está de través e demasiadamente forte para esse tipo de avião, mas nós dois sabemos que o avião segura bem nessas condições, não é isso?


- É sim senhor, Seu Alaor!

- Então lá vamos nós! Só vou ali fazer um xixi e volto já.

Novamente algo havia acontecido. Alaor não voltara ao avião e por mais que Júlio o procurasse, nada de encontrar o velho. Não era feitio de Alaor fazer esse tipo de coisa. Algo realmente teria ocorrido. O dia se foi sem que, mais uma vez, o aluno fizesse seu vôo de check.

O dia seguinte amanheceu chuvoso. Alaor chegou bem cedo ao Aeroclube, e antes mesmo que os aviões tivessem sido tirados do hangar, lá estava Júlio sentado na roda do Paulistinha. Sem maiores explicações, o instrutor – notando a cara de contrariado do aluno – mandou que o ajudasse a empurrar o avião pra fora. A chuva apertava paulatinamente.Júlio num salto disse:

- Seu Alaor, eu não vou! Como é que o senhor quer voar com uma chuva dessas? O senhor pode até não gostar do que vou dizer, mas me deixou esperando que nem um bobo nos dois últimos dias. Agora que está chovendo quer voar?

Alaor abriu seu costumeiro sorriso.

- Filho, nos últimos dois dias você estava sendo checado. Eu não preciso voar com você pra saber do que você é capaz. Afinal, tudo o que você sabe, eu lhe ensinei. Nos dois últimos dias você havia sido reprovado no check, mas hoje está aprovado.

Júlio fez uma cara de espanto e pediu explicações ao velho Mestre.

- Filho, você lembra no primeiro dia, quando falei-lhe da vela do avião?

Júlio balança a cabeça afirmativamente e Alaor continua:

- Pois é, Júlio, seu check havia começado e terminado ali. Mesmo sabendo que o avião estava com um problema técnico, você se dispôs a voar. Um piloto jamais confia no que o mecânico ou outro piloto diz, sem que verifique com seus próprios olhos aquilo que está sendo dito.

- E ontem seu Alaor? O avião não estava mais com esse problema!

- Ontem, Júlio, eu falei que o vento estava demasiadamente forte para o avião, mas que o "avião" não teria problemas com isso. Em nenhum momento você disse que “você” teria ou não dificuldades com aquele vento, mesmo sabendo que sua experiência ainda não é suficiente para enfrentar determinadas situações. Seu check estava acabado ali. A paciência e a análise são as maiores virtudes de um Piloto. Pilotar um avião, qualquer um pode aprender. Como você poderia ostentar uma licença de piloto, se suas atitudes não correspondiam à altura do comprometimento que se espera de um Piloto?


Júlio abaixou a cabeça, sabendo que a maior e melhor instrução estava lhe sendo dada naquele momento. E Alaor completa:

- Mas hoje foi diferente. Diante da chuva você não se intimidou em me dizer um sonoro “não”. Percebeu sua real condição em relação ao vôo, não expondo nenhum de nós dois ao perigo. E é isso que eu espero de você como Piloto. Você tem futuro, filho. Suas habilidades são surpreendentes, mas devem vir acompanhadas de sensatez e equilíbrio. E isso você só demonstra quando se propõe a pensar na aviação não como um fim, mas sempre como um princípio. A cada dia você vai aprender coisas novas, para as quais poderá estar ou não preparado. Encarar a todas essas coisas é como colocar uma venda nos olhos e dar passos sem saber se o que há na frente é um abismo. Antes de fazer um vôo analise o meio em que está. Analise a máquina que vai conduzir e por fim, analise as suas limitações como homem. Só assim você terá a certeza de que o próximo passo nada mais será do que o antecessor de outros maiores.

Alaor deu um grande abraço em Júlio, dizendo:

- Parabéns Comandante! Você passou no check. Já havia assinado a sua licença provisória, mas só agora tenho a certeza de poder entregá-la a você.

Passaram-se quinze anos. À porta do jato comercial, aguardando o embarque ,está Júlio, vestido num impecável uniforme de Comandante. As quatro faixas douradas reluziam em cada um dos punhos do jaquetão azul. O embarque é autorizado, e agora o Comandante Júlio vê aproximar-se do avião o funcionário trazendo um ancião numa cadeira de rodas. A vida lhe reservara, como presente, uma das maiores e melhores coincidêncis que poderia protagonizar. Júlio desce rapidamente as escadas e manda que o funcionário se afaste. Delicadamente retira o idoso da cadeira de rodas, beija-lhe a testa e, carregando-o no colo, sobe as escadas do avião cercando-o de cuidados. Vendo o esforço do Comandante, o funcionário tenta intervir:

- Comandante, o senhor não precisa fazer isso...

Júlio replica:

- Preciso sim. Um dia ele também fez isso comigo.

O velho era Alaor - o Mestre a quem Júlio era eternamente grato pela maior lição que recebera na aviação.

Autor: Marcelo Quaranta (texto recebido via e-mail, através do Yahoo Grupos de História da Aviação)